29 de dezembro de 2012

O bom bolero



O bom bolero

   Neons infernais consomem o salão escarlate, a luz meio ilumina os corpos febris e os veste em ardência. Por entre um farfalhar de saia e outro, desejáveis coxas desabrocham para o mundo. Os homens caçam as coxas esporádicas e os decotes que se vislumbram. Os homens caçam a pele nua com as retinas, por entre a selva de tecidos que chispam, e eles dançam, para que assim as suas mãos possam desbravar os territórios restritos aos seus olhos. E Ele... Ele também caça a pele. Não a pele de uma mulher qualquer, porém, mas a pele de um homem específico. Outrossim, por não ser exatamente a pele que o interessa, Ele pretende perfurar-lhe um pouco mais profundamente.

   Por isso seus olhos treinados percorrem o salão com precisão, sem desperdiçar tempo com qualquer pedaço de carne que não seja o que lhe chama, em uma antecipação de sangue, através do colarinho folgado. Ele não se retém a pele alguma que não pulse igual à daquele homem, pois só a pulsação daquele homem cessada o interessaria. Quando, por fim, Ele encontra uma amostra peculiar de pele nua saindo do cabelo e entrando no paletó, ela é exatamente a pele que Ele procura, e ela pulsa, veja só, que Ele consegue enxergar até mesmo a discreta linha roxa que a faz pulsar!

   Mas ainda não está na hora. Ele a observa, mascarado, em um canto. Suas mãos frias tocam o punhal pálido que descansa em seu bolso. A sua pele, o seu motim de carne, está fixado em uma coxa. Ele vê os lábios de sua vitima tocarem o cálice com sutileza, e vê a garganta galopar à medida que a bebida a cavalga. O líquido o entorpece.

   Por fim, os holofotes escondidos iniciam um bolero de bom gosto. Seu pedaço de carne parece apreciar a música. Sua pele não caça mais a coxa, os seios ou os lábios de nenhuma outra mulher, a não ser a que ele enxerga por detrás de seus olhos fechados. É hora de Ele tomar a pele que o pertence. Ele se levanta e caminha até seu pedaço de carne embalado. Senta-se ao lado da vitima e pede um copo da mesma bebida que ela provou há segundos – a sua última. É cara, muito cara, mas Ele não pretende pagar.

   Por opção, Ele só mata com música. Sua lâmina dança melhor ao som de algo bom, e também é mais agradável para a vítima. A música é incrível, pois pode ser entendida até pelo mais subversivo dos homens, e isso torna-o bom. Ele só mata homens bons, porque os ruins não merecem, talvez, a morte. Pode ser uma questão de toque, também. Visto que a música sugere seu fim, Ele decide agir.

   Ele inclina-se para frente e recorta a garganta do homem. O sangue se derrama como se Ele houvesse estourado um saquinho de leite. Seu pedaço de carne, de embalagem aberta, procura as palavras que lhe fugiram pelo orifício, mas não as encontra. Os outros pedaços de carne observam em um terror quieto. Talvez não tenha sido fundo o bastante. Ele enterra a sua lâmina no orifício encharcado e sente com certo prazer a laceração dos músculos e o agouro do metal tocando os ossinhos do homem. Depois, Ele solta os cabelos dele e o cara tomba no chão com força, tendo o rosto deformado ao partir-se contra o piso de pedra.

   Ele guarda a lâmina no sobretudo cinza e retira-se do local com tranqüilidade, ao mesmo tempo em que a música acaba. Ele se imagina o melhor homem da face da terra.    
     

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