O Vale de Abril
Em dado
momento, ele percebeu que estava desperto. Não sabia definir o instante exato
em que acordou, tampouco onde estava. Ele já vinha observando o teto por um
longo tempo. Sua palidez lhe era desconhecida. Sentiu-se, pouco a pouco, tomado
por um sentimento estranho; então, virou a face. Com um sonoro estalo no
pescoço, sentiu todo o seu corpo contorcer-se de dor. Estava pesado e
sonolento, e sua boca tinha gosto de fel. Sua mente, profundamente entorpecida,
registrava o ambiente sem atribuir-lhe nenhum significado. Era como se olhasse
os objetos, mas não os conseguisse interpretar. Ele dormiu logo em seguida.
E, de novo,
o teto. Não fazia idéia de quando havia acordado outra vez. O fato é que, em um
passe de mágica, descobriu-se novamente em vigília, a observar um branco
desconhecido e profundamente triste. Na presente ocasião, sentia-se um pouco
mais forte, então sentou-se à beira da cama. Teve de esperar minutos até que a
tontura e o enjôo evaporassem de si. Estava definitivamente um trapo.
Pôs-se de
pé. O assoalho de madeira estava morno. Pela janela, o calor de uma tarde de
verão invadia o plácido cômodo. Era um local agradável, porém estranho. Tendo
as pernas extremamente fracas, e dores por toda a extensão do corpo, ele
decidiu deitar novamente e, novamente, cobriu-se em um sono profundo.
Da terceira
vez ele despertou imediatamente. Lá estava o teto, de novo. Ele sentou-se, e
desta vez a tontura foi breve, e as dores já não eram tão amplas. Percebeu que
seus lábios estavam como que dilacerados e que seu ombro esquerdo tinha o dobro
do tamanho e estava muito roxo, além de notar diversos arranhões
consideravelmente grandes espalhados pelo seu corpo, e uma mão esquerda
adormecida que não lhe doía, mas muito preocupava. A causa dos ferimentos não
lhe passou imediatamente pela cabeça, porque ela ainda latejava e confundia-se.
Ele levantou-se e ensaiou alguns passos. Cedo recobrou a capacidade de andar.
Rondou calmamente o quarto modesto, feito de madeira e desprovido de
eletricidade, porém muito agradável e fresco, e então tornou a sentar na cama.
- Onde
estou? – Perguntou em voz alta, como que para testar seu próprio timbre.
Que misteriosos
motivos o haviam trazido até aquele jazigo? Ele percorreu suas lembranças
confusas em busca de explicações pela primeira vez. Há muito tempo, desde
criança, havia vagado pelas ruas da Metrópole, sem rumo, buscando o seu pão nos
restos dos outros homens. Sua vida não passara de uma luta interminável e
melancólica. Em última ocasião, lembrou estar no deserto gelado do norte, com
sua esposa Sansara, em busca de um futuro. Então, os lobos, o sangue, e, logo,
o teto branco. Lembrou-se da lenda das bruxas do norte, das temíveis
feiticeiras que aprisionavam os desprevenidos em seus covis de falsa paz, e
então os devoravam. Por certo havia sido pego por uma! Havia de fugir.
Levantou-se
novamente e dirigiu-se à porta. Abriu dela o suficiente para o seu corpo
desnutrido. Percorrera o corredor escuro com o silêncio característico dos
miseráveis, até findar em uma sala ampla e bem mobiliada, muito agradável, em
cujas paredes explodiam duas grandes janelas. Visto que faltavam portas, ele apoiou
o pé no parapeito da janela mais próxima e preparou-se para o salto.
- Ora,
acordaste?
A bruxa!
Imediatamente ele pulou. Logo que seus pés tocaram o solo, seus joelhos
cederam e seu corpo curvou-se em pânico e dor, e ele rolou pela relva abaixo. A
moça seguiu a sua queda e tomou o seu corpo em seus braços.
- Vá com
calma! Ainda não recuperaste as forças por completo. – Ela o reprimiu, mas
falava de modo ameno.
A bruxa
ajudou-o a levantar-se e levou-o até uma mesa de ferro que ficava no que
parecia ser o jardim da pequena casa. Ao norte, por trás da casinha, Ele via os
picos da montanha de gelo fazendo uma meia lua, como que protegendo o vale onde
estava. Ao sul, um vasto bosque encobria o horizonte. Naquele ponto, ele já
tinha certeza tratar-se de obscuridades, pois era impossível haver qualquer
outra coisa naquela região a não ser metros e metros de neve. Nos arredores da
casa da bruxa, porém, havia paz e calor, brisa fresca e ramagens verdes, e um
plácido céu anil.
Vinda de casa, a bruxa pôs um copo de certo
líquido âmbar, meio viscoso, a frente dele. O homem olhou o néctar com
desconfiança. Tomou-o nas mãos e balançou, na esperança de encontrar nele
qualquer coisa de estranho. A bruxa riu-se de suas precauções.
- Não te preocupa, mau nenhum vai fazer-lhe.
Logo que tomares, te sentirás melhor.
- E como vou saber se não é veneno? – Ela
tomou o copo de sua mão e bebeu um gole.
- Qual o sentido de dar-te veneno agora?
Explicação razoável. Bem, o que ele tinha a
perder? Derramou uma fina cascata do mel nos lábios, e sentiu com surpresa a
dor dos ferimentos ser substituída por um calor manso. Logo que o líquido lhe
desceu pela garganta, seu corpo relaxara, e tornara-se quente. Exclamou
tratar-se de uma bebida incrível.
- Chama-se Hidromel, a bebida dos Deuses!
Não acreditas? Descansa, que já lhe mostro a fonte.
E assim ele o fez. Deixou que os cálidos
raios solares restaurassem a sua força, enquanto observava o bosque e os
pássaros, as flores e o cabelo dourado da moça. Passadas algumas horas, eles
levantaram-se e dirigiram-se por uma larga trilha que cortava as árvores.
Tinham os passos lentos e apreciavam as bordas da floresta com calma.
- Como se chamas? – Perguntou a bruxa.
Ele respondeu com sinceridade. Ela disse que
se chamava Abril. Trocaram um olhar confiante e continuaram a caminhada.
De alguma forma, ele estava começando a se
aprazer com a situação. Antes estivera, senão tenso, um tanto desconfiado e
duro com toda utopia daquele vale. Agora, porém, sentia-se tão bem que não se
importava se aquilo tudo era obra de magia, um simples acaso ou o que quer que
fosse. Havia sofrido tanto durante toda a sua vida, amaldiçoado com tamanha
convicção e entrega as noites frias em que uivava de fome, que a perspectiva de
um descanso, ainda que lhe findasse em morte, ele aceitava com todo o coração.
Vinte minutos ao sul, chegaram a um
caudaloso rio de leite! Espantado, ele recusou-se a beber quando Abril lhe garantiu
segurança, até que, tendo cedido, provou da melhor lactose de sua vida. Ela
também se deliciou com aquele fenômeno incrível, sobrenatural, ou, muito mais
provavelmente, mágico, que escorria de uma fenda em uma rocha rosada e
percorria um leito macio de certa matéria desconhecida. Eles descansaram mais
um pouco às margens do leite, pois o corpo dele muito doía, e só retomaram à
caminhada uma hora depois, porque o sol já iniciava o seu mergulho de fim de
tarde.
Chegaram, por fim, a uma grande e larga
árvore, talvez tão grande quanto uma sequóia gigante, de cor muito viva e cujos
galhos balançavam jovialmente no teto do mundo. Abril tomou uma faca na mão e
cortou a casca do vegetal, de onde escorreu um líquido viscoso e âmbar, o Hidromel.
O rapaz sedimentou respeito e silêncio perante a vista daquele ser sublime,
colossal e magnífico, que poderia muito bem ser Deus. Eles beberam um pouco do
líquido, como em um ritual silencioso, e caminharam de volta a casa, quando o
sol finalmente se pôs.
●
Os dias se passaram em um ritmo calmo e
feliz, exatamente como o descrito. A cada noite, ele esperava ser finalmente
morto pela bruxa, mas descobria-se na manha seguinte justamente o oposto: mais
vivo. Seu corpo melhorava em uma velocidade sobrenatural, muito provavelmente
por causa da seiva da grande sequóia, e a vitalidade de seus músculos estava,
pouco a pouco, superando os seus padrões antigos. Não se alimentava de
banquetes, e por muito considerava as refeições pequenas demais, mas aos poucos
descobriu que o que tinha era sempre o suficiente, e que o convívio com Abril
já não lhe tornava a fartura necessária. As noites do vale eram sempre muito
mornas e agradáveis, enquanto os dias eram alegres e divertidos. A bruxaria
era, em ultima instância, maravilhosa.
À medida que seu corpo ia ficando mais
forte, as caminhadas vespertinas tornavam-se mais extensas e altivas, e as
maravilhas da magia iam desabrochando, inexoravelmente. Juntos, eles viram
seres extraordinários, plantas de beleza indizível, montanhas de chocolate,
torres de ferro, e todo o tipo de fantasias que podemos imaginar. Porém, ao
invés de duvidar mais a cada nova explosão do impossível, Ele acreditava mais
na validez de tudo aquilo, na santidade da magia do vale. Tudo lhe parecia tão
perfeito e alegre que seria impossível duvidar. E, de fato, ele estava certo!
Não havia truques, armadilhas, tristezas ou defeitos que inferissem corrupção
no vale de Abril. Era a verdadeira utopia do mundo, a verdadeira perfeição.
E, à medida que o tempo passava, ele ia se
apegando mais à bruxa, ao ponto de apaixonar-se. Ela era excepcionalmente linda!
Sim, é verdade que Sansara, sua antiga esposa, era, também, belíssima; mas a
beleza de Sansara vinha de suas linhas levemente imperfeitas, que lhe conferiam
certa aura profana. Abril, ao contrário, possuía uma beleza que vinha do âmago,
do profundo significado da palavra, um modelo perfeito de menina. Tinham,
também, uma empatia imensa, como se fosse gêmeos, como se entendessem o “eu” do
outro de forma etérea. Não tardou para que se enamorassem e convivessem
intimamente, de forma que suas almas se juntassem em uma só, e pudessem
finalmente alcançar o ápice da felicidade.
Certa vez, depois de um dia inteiro de
caminhada, chegaram ao extremo sul do vale. Era incrível como aquele paço
utópico podia existir no deserto de neve sem que ninguém notasse. Da magia, ele
não esperava menos. Havia, porém, é óbvio, um meio de entrar e,
conseqüentemente, de sair do Vale. Era uma parte do bosque onde a copa das
árvores era feita de nuvens. A vista era belíssima, e o ar cheirava muito bem,
pena que era muito distante, e por isso fazia-se inviável estar lá sempre. Em
um dos seus muitos monólogos, onde Abril explicava as coisas do vale e falava
sobre o mundo, ela disse:
- Este é o bosque do fim. Se prosseguirdes
por aqui, logo sairás do vale e estarás novamente no deserto gelado.
- Impressionante! Será que não poderíamos
sair e expiar lá fora?
- Isso, nunca. A entrada para o vale é
imprevisível e mudana. Foi muita sorte tua tê-la encontrado. Uma vez que tu
saias, será impossível retornar.
Sua voz era amena e sonora, e ele sorveu-lhe
as palavras com muito prazer. Não havia nele, afinal, qualquer intenção de
deixar o vale, portanto não importava. E, assim, continuaram a andar e
enamorar-se, transbordando de felicidade.
Em outra ocasião, tendo perguntado-lhe sobre
a bruxaria, Abril lhe respondeu:
- É verdade que isto tudo é bruxaria. É,
porém, perfeita, por isso não se preocupe. Este vale foi criado com magia há
muito tempo, pelos meus ancestrais, e nós temos vivido aqui desde épocas muito
remotas. Freqüentemente viajantes perdidos chegam aqui. Muitos ficam, como tu.
Outros preferem ir embora.
- Não imagino o motivo destes; é, realmente,
um vale perfeito. Não posso crer que alguém, algum dia, o abandonou!
E, nesse instante, Abril olhou para ele,
meio preocupada. Mas, o vale era perfeito, e por isso ela suspirou e lavou seus
poucos temores.
Isto porque havia um instante, talvez um ou
dois minutos por dia, onde seu companheiro envolvia-se de melancolia. E este
instante era quando ele pensava em Sansara. Sansara era a sua antiga esposa,
antes de ele findar no vale. Usualmente, acontecia no momento do despertar:
enquanto ele encarava o teto, procurava lembrar a aparência da mulher, de seus
cabelos negros e sujos, do seu rosto travesso e jovial, e da irritante
esperança que ela carregava consigo, mesmo sendo ambos do tipo mais miserável.
Neste momento, Abril, a bruxa, percebia a tristeza e o apego do rapaz com
temor, ainda que fossem efêmeros.
Porém, de fato, havia fundamento nos temores
dela. Três anos se passaram muito rapidamente no vale, e visto que
enamoravam-se, fizeram um filho. Eis que, por puro acaso, ou mesmo por
influência da magia, o menino era a cópia perfeita de Sansara! Por causa deste
filho, os acessos melancólicos do rapaz tornavam-se cada vez mais freqüentes, e
a ânsia de Abril, mais profunda.
Há de se entender que não era a saudade,
tampouco o amor, o que o afligia. Com certeza não havia entre Ele e Sansara
nada, senão uma dependência materialista, espiritual, que nenhum bem trazia e
que empobrecia a ambos. Eram simples frutos da aspereza humana, da miséria
social, dois seres insignificantes que, juntos, se tornavam ainda mais
miseráveis. E, de fato, quando acordava e pensava em Sansara, era muito
freqüente que Ele não pudesse recordar-lhe sequer o rosto!
O que o fazia devagar, porém, era algo mais
profundo. Algo que Ele possuía quando estava com Sansara, mas não era, em si, a
própria Sansara. Aquilo era a única coisa que lhe faltava no Vale, apesar de Ele
não fazer a mínima idéia do que significava. Acontece que, no mais profundo de
seu ser, ele não sentia-se completo sem aquilo; e, que o digam os iluminados, o
que não é completo não é, de modo algum, perfeito. Os dias passavam, e cada vez
mais o Vale se tornava ordinário e enfadonho. Seu semblante ia entristecendo, e
ele sentia fome. Os anos prosseguiram e a magia tornou-se irrelevante.
Exaurido, decidiu deixar a sua utopia depois
de exatos sete anos. Acordou mais cedo do que o habitual, certo dia, beijou a
tez sacra de sua mulher e filho, e caminhou solitariamente até a floresta das
nuvens, onde o frio era intenso. A jornada que precedeu a sua ida foi, apesar
das circunstâncias, refrescante. O ar era fresco e amplo, o Vale reverberava de
vida e de cor e tudo era infinitamente magnífico e supremo. Sentia-se vivo,
naquele dia, como na primeira caminhada. Chegando ao bosque onde as copas das
árvores se transfiguravam em nuvens, onde podia-se beber das árvores apenas
passando a mão pelas suas folhagens úmidas, Ele olhou para trás e reverenciou o
Vale. Lembraria de Abril e de seu filho com muito amor e saudade.
Contemplou a morte de si mesmo, enquanto transpassava
o limiar da perfeição.
Essa semana eu estava pensando em escrever um texto sobre bruxas, porém achei que as pessoas achariam idiota, então não escrevi. Mas, acabei de ler seu texto, - que por sinal foi muito bem escrito e me fez sentir como se eu estivesse dentro do vale -, e tomei coragem para escrever o texto que eu queria, obrigada :)
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirSempre vai ter alguém que acha suas coisas idiotas. Só não escreva para essas pessoas!
Obrigada :)
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