Depois do
Show
Uma gargalhada xinga a rua; um grupo de
passos baldios interrompe a madrugada. É a euforia do pós-show: a emoção que os
faz correr e gritar, como se não existisse corpo em toda a música. Há risos e
comentários, há a fumaça de cigarros baratos e latinhas quicando na sarjeta. O
grupo percorre escandalosamente os paços escuros da ladeira, vomitando barulho,
em uma busca desesperada por existência.
Porém, a madrugada não os parece notar. O
silêncio do sono é intocável. Os Punks são apenas moscas gritando.
Surgem três vultos ao fim da ladeira. A
banda se junta, em sussurros remotos. Três fãs, três gatas no cio, subindo o
asfalto. O baterista vai embora mais cedo. Os outros três urubus dividem a
carcaça. Cody atira seu fumo ao chão e esmaga-o.
-Vocês tocam bem pra caralho, caras! – Disse
uma, piercing nos lábios, loira.
-Ainda melhores na cama...
Uma cotovelada na boca do estômago, por
parte do vocal, e o guitarrista se cala. Duas das meninas riem, a outra observa
o pequeno baixista. Cody, baixo e magro, de cabelos espessos e bagunçados,
encara-a como um filhote depressivo. Sua camisa cinza é muito folgada para seu
corpo.
-Então, a gente tava pensando em beber mais
um pouco antes de dormir... Topam? – Sugeriu o vocalista. Não foi necessária
muita persuasão para fazê-las babarem a oportunidade. Apenas a menor das
presas, uma garota de cabelo maculado em azul e de muito rímel nos olhos, disse
que não estava com estômago para a coisa e que iria voltar para casa. Cody se
ofereceu para acompanhá-la.
-Porra, que sortudo. Ele estava mirando a
mina o Show todo – Comenta o guitarrista.
-Ah, nem é sorte. Ela também estava mirando
ele – Complementou uma das raparigas.
-É olho, seu bundão. É tudo questão de olhar.
– Disse o vocal.
Não há mais Punks correndo a ladeira, não há
mais fãs eufóricas e doidas para dar. Cody
caminha silenciosamente ao lado da menina. Agora são só dois vultos
embalsamados pela neblina da madrugada, como duas silhuetas em uma tempestade
de neve. Nilo olhou a menina, que o olhava. Tinha olhos verdes como esgoto
radioativo, realçados pelo rímel.
-Eu conheço um lugar legal. – Disse Cody. A
menina riu.
-Acho que você não entendeu, cara. Como se
diz? Tudo tem seu preço.
-Ah é? E qual é o seu?
-Cem pratas.
Cody manteve o olhar, e depois mirou o topo
de um prédio. O céu estava claro naquela noite. Brilhava em um vermelho morto,
ao passo em que suas nuvens refletiam a ferrugem dos postes de concreto. A
cidade tinha um ar fabril, como se seqüestrada por uma espessa cortina de
fumaça carbônica. Cody estendeu o dinheiro sujo, depois de procurar as cédulas
no bolso. Seus dedos fediam a cigarro e corda de baixo.
Alugaram um quarto fodido em um paço
marginal da metrópole, onde a cama gemia muito. Fizeram amor como quem despena
um lírio. Era como se seu o corpo de leite derramasse sobre uma boca sedenta, e
como se o leite fosse uma poesia e Cody, um homem prestes a degolar-se. Era
como se ele sentisse a poesia como uma transa. E a cada vez que lhe englobava
as nádegas nas mãos, a cada vez que se lhe dispunha a chupar seus seios,
englobasse ao invés da carne, um mundo, e chupasse não o corpo, mas sua vida.
Terminaram exauridos, completamente vazios e felizes. O lírio violentado
germinara mil outros lírios, puríssimos. A cama suja da urna era como um
Nirvana, assim, como um orgasmo.
Depois de um breve sono sem sonhos, coisa de
uma hora, Cody afundou-se à varanda e deu um trago. A cidade dormia, e os
vagabundos que vadiavam eram seu sonho. A menina do rímel chegou à porta, de
corpo despido resplandecendo à luz mecânica da metrópole. Seu cabelo azul cor
de céu soava completamente artificial, porém lindo, tão lindo que Cody teve
vontade de se afogar nele. Ela sentou-se na extremidade oposta da franzina
varanda.
-Você não é puta. – Constata Cody. A menina
riu.
-Não sou, mas acabei de ganhar cem contos.
Queda o silêncio, naturalmente.
-Quer que eu devolva? - A menina pergunta. Cody
acena negativamente. – Eu gosto de pregar peças nos caras. Eles normalmente não
percebem.
-Você vai acabar virando puta de verdade,
assim.
-Eu devolvo o dinheiro, sempre.
-Aposto que a metade dos machos não aceita a
grana de volta.
Mais uma vez, o silêncio, como fenômeno
inevitável. A sombra do pequeno baixista, emoldurada sob o
vidro da varanda,
era imensa, icônica.
-Está chateado? – Perguntou a garota.
-Não, na verdade. – E sorri, um sorriso
cansado. – Apesar de ser muito fácil forjar um sorriso.
A menina ri. - No que você está pensando?
Cody não responde imediatamente. Ele traga
uma grande quantidade de fumaça e aprisiona-a nos pulmões desgastados. Lança um olhar baldio pela metrópole. Luzes
de neón convulsionam por toda a marginalidade da noite. As nuvens se alucinam,
sujas até o topo. O exército das tribos urbanas marcha pelas avenidas cromadas
em petróleo, um tiro ecoa pelas vielas e um Skinhead tomba morto. Sirenes de
polícia sempre chegam primeiro que as ambulâncias. Cody solta a fumaça devagar,
e sua mente se esvazia, e torna-se completamente azul.
-Estava pensando em fazer amor de novo...
Deixar um pouco de ser Punk, de ser o baixista da banda, de ser o filho
perdido, e ser só Eu. Isso tudo fode comigo.
-É como se fossemos só uma coisa, né? –
Constatou a menina, levantando-se e tomando as costas do rapaz nos braços.
-É como se fossemos alguma coisa... – Cody
levantou as mãos à procura daqueles cabelos.
Podia sentir o coração da menina a bater na
porta de suas costas, sentia os dois seios polidos pressionados contra seu
omoplata. Ele explorava o cabelo da garota como quem busca coisa muito velha,
em baú muito querido. E as suas expirações, se confundindo na orquestra das
sirenes noturnas, se aquecem mutuamente no gélido vento da metrópole, como se
fossem dois espíritos gêmeos de éter que se encontrassem finalmente às portas
do céu.
-Vamos para a cama...
E se iluminaram, se iluminaram a noite
inteira.
Porquê nunca mais postou texto nenhum ?
ResponderExcluirBloqueio criativo :/
ExcluirVou postar um hoje
Acontece com todo mundo, mas para mim, que a única forma que tenho de te entender, é através dos seus textos, é um desespero quando você fica muito tempo sem postar.
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