14 de abril de 2013

Lesley,




LESLEY,


   Há dois anos eu não via a sua cara, quando você de repente bateu à minha porta e eu atendi. Não pude evitar o espanto. As palavras me escaparam e voaram junto a uma brisa que passou. E você entrou, como se estes dois anos fossem fumaça, como se houvéssemos nos visto ainda ontem, no pátio do colégio.

   Confesso que foram difíceis esses tempos sem você, foi como um grande vácuo na minha vida perdida, tudo muito estranho. O Ensino Médio acabou muito rápido, e de repente não havia mais Lesley, não havia mais Ana Maria, nem Pedro, nem ninguém. Restara apenas Tom. Foi duro ter de conviver com Tom, Lesley, porque só então eu percebi que não sabia nada sobre ele. E você já havia me dito isso, certa vez, quando estávamos sentados, de ombros colados, na escadaria da Escola. Você falava, e eu ouvia, sobre o Self e sobre o autoconhecimento, com sua usual fala incansável, possuída por um entusiasmo iconoclasta. E então eu, cético, respondia que você estava lendo muito Hermann Hesse e que a vida não era exatamente assim.

   A verdade, Lesley, é que a vida não é exatamente como nada, e que estar sozinho é a única coisa verdadeiramente assustadora. Mas, de um modo ou outro, eu aprendi a viver sem a Escola, pois tive mesmo de fazê-lo, já que você sumiu muito repentinamente, sem sequer despedir-se ou deixar contato algum.

   E até que estava indo tudo bem quando, de repente, você retornou, metida em um blusão e em um short muito curto, com os cabelos cortados tão reluzentes quanto areia, explodindo contra o vento como a espuma das mais violentas marés. “Ola, Tom”, você, de algum modo, solta estas palavras, e invade o meu quarto e a minha solidão sem pedir licença, sem desculpar-se. Eu sigo as pegadas de lama que os seus passos firmes e largos deixam no assoalho do apartamento. Você larga uma sacola com latas de cerveja na mesa e abre as persianas e a janela. Um sol moribundo e ferido invade o ambiente, colorindo seu cabelo em um laranja forte, e a sua face em um vermelho morto. O bafo da cidade penetra a urna e nós aspiramos carbono.

   - Ana Maria está morta, Tom.

   E eu engasgo.

   - Como?

   Foi tudo o que pude dizer. Você, Lesley, abriu duas latinhas enquanto falava, e me estendeu uma. Não parecia estar muito abatida.

   - Ela casou com Otávio, lembra? Aquele veterano arrumado, meio inteligente e alto, que jogava no time da escola; eles começaram a sair logo depois da formatura e casaram em pouco tempo. Você sabe como ela era. Logo estava completamente na dele, mesmo depois de...

   Você olhou-me, avaliando se devia ou não dizer aquilo. Bem, eu realmente não me importava; bebi um pouco da cerveja, que estava gelada, e completei a frase.

   - Mesmo depois de mim.

   - Exato. – E, então, um dos raros momentos em que você pensava profundamente antes de dizer algo, 
mordendo os lábios de leve. – Eu achei que ela iria melhorar, Tom. Achei que faria bem para vocês dois...

   - E, de fato, fez; a gente só não percebeu na hora. Mas, enfim, onde você se meteu esse tempo todo?

   - Eu estive viva, Tom, o que mais importa? – Você rondou o quarto todo, mexendo no que lhe 
interessava, enquanto falava. – Andei por aí fazendo coisas.

   - E Ana? Termine a história.

   Neste momento, outra baforada de carbono entrou no apartamento. Minha janela era um front de batalha entre o meu quarto e uma pavorosa fábrica de papel, cuja chaminé carbônica lançava freqüentes sopros contra mim. Você sugeriu que déssemos uma andada. Nunca suportara ficar muito tempo parada. Saímos do apartamento e rondamos os rios de concreto.

   - No fim, ela não fez Moda como queria. Otávio tinha uma idéia - em minha opinião, muito idiota - de que ela deveria apenas cuidar da casa e dos filhos porque ele iria prover todo o capital que precisasse; e então Ana fez justamente o que ele mandou.

   As cervejas acabaram, e nós entramos em uma loja de conveniências e compramos mais duas. Você pagou, Lesley, e me perguntei onde arranjara todo esse dinheiro. Eu estava completamente duro na época. Fomos para um parque qualquer, onde o verde das árvores era tratado como resíduo, e nos sentamos em um banco de madeira, e ficamos a observar o céu plúmbeo.

   - Então, um dia Ana escorregou e bateu a cabeça no chão. Foi dormir e apagou para sempre, Tom. Otávio só foi encontrar ela dois dias depois, quando o corpo já estava se decompondo. Ele tinha viajado em um congresso, e ela estava em casa sozinha, coitada. O enterro foi uma semana atrás.

   - E por que você demorou tanto para me avisar, menina? Ou melhor, por que não deu notícia alguma 
durante esse tempo todo?

   Você se levantou e esticou o corpo, este corpo esguio e energético, porque não agüentava ficar mais de um minuto sentada. Eu, na verdade, não precisava ter perguntado. Você, Lesley, sempre foi incansável e faminta. É do tipo que sai para dar uma volta de bicicleta e só regressa uma semana depois, simplesmente porque, em um momento de devaneio, se perguntou até onde seria capaz de ir. Havia em mim, de fato, uma mesma ânsia, um mesmo desejo mortal pela vida, embora me faltasse energia. Eu era um melancólico, um poeta cansado, enquanto você era um leão flamejante, colérica.

   Ana Maria, por outro lado, desconhecia a aventura. Era-lhe de interesse apenas maquiagem e garotos, doces ou qualquer coisa que lhe entretivesse. Lembrei-me de sua aparência feminil; tinha cabelos muito loiros que lhe faziam caracóis, vivia em dietas, porque tinha abundancia em certas curvas, mas, Deus! Era, de fato, linda! Eu não conseguia imaginá-la morta, por mais que procurasse fazê-lo. Inclusive quando fechava os olhos, tudo o que enxergava era o seu rosto sorridente, e percebia com tristeza que ele já não me dizia nada.

   - É mesmo possível que ela esteja morta, Lesley? – Perguntei, num impulso.

   - Ela está morta, Tom. Esse talvez seja o único fato totalmente indubitável.

   - Mas, uma morte tão casual... Em vinte anos tão insignificantes!

   Isso me perturbava. O que andamos fazendo durante todo esse tempo? Comemos, reproduzimos, olhamos para o teto e, enfim, morremos. A vida de Ana Maria me pareceu extremamente pequena naquele momento. Enquanto isso, você bebia a cerveja e olhava para uma aeronave distante. Os carros roncavam em algum lugar ao nosso lado, confusos, berrantes. Ana Maria morrera, e deixara para trás nada além de um legado de fotos, todas fúteis demais para representar-me alguma coisa. Um dia todos nós iremos evaporar, de forma que qualquer estrada que percorrermos será, em ultima instância, insignificante. De que me vale a vida, então? De que me vale a possibilidade de fazer algo, de escrever, de deixar minha lasca na história? Perante a morte é tudo muito pequeno e dispensável. Perante a morte, toda a vida é fútil.

   Mas, vendo você atravessar a rua e ir embora, minutos depois, sem muito aviso, uma conclusão finalmente me acometeu. Diabos, você veio e foi tão rápido! Em vinte minutos, trouxe do passado toneladas de lembranças, e fez-me perder todo o conforto e estabilidade que, com muita luta, eu havia adquirido. Deixaste-me louco, Lesley! Novamente louco, exatamente como nos tempos de escola, exatamente como nos tempos onde as idéias me pipocavam na cabeça e eu não sabia o que fazer com elas, senão deixar que me consumissem por inteiro.

   Onde estava a minha vida? Onde estavam as minhas coisas? Vendo o seu corpo quente penetrar as veredas da cidade, e seguir adiante sempre, sem olhar para trás, sem hesitar nem um único instante, eu percebi uma série de coisas que me faltavam. Ana Maria não era tão patética o quanto eu imaginava; não existe isso de deixar algo para o mundo.

   A vida se resume em suprir as nossas próprias ânsias. Ana tinha as suas, e as supriu a seu próprio modo; eu ignorara as minhas em busca de um conforto o qual hoje, Lesley, porque eu te vi ir embora, estou disposto a sacrificar. Que venha a loucura, se é ela quem me faz vivo!

   Enquanto a você, menina, nada posso fazer. Novamente sozinho, não sei se te verei de novo daqui a um, dois, ou dez anos. Na verdade, pouco importa; o mundo irá te proteger, pois és filha dele, e você conhece os seus caminhos. Sempre muito viva e bonita, eu desejo a ti sorte, Lesley, porque de um jeito ou de outro, eu te amo.

   De Tom, com a esperança de que essa carta possa te alcançar.    

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