LESLEY,
Há dois anos eu não via a sua cara, quando
você de repente bateu à minha porta e eu atendi. Não pude evitar o espanto. As
palavras me escaparam e voaram junto a uma brisa que passou. E você entrou,
como se estes dois anos fossem fumaça, como se houvéssemos nos visto ainda
ontem, no pátio do colégio.
Confesso que foram difíceis esses tempos sem
você, foi como um grande vácuo na minha vida perdida, tudo muito estranho. O
Ensino Médio acabou muito rápido, e de repente não havia mais Lesley, não havia
mais Ana Maria, nem Pedro, nem ninguém. Restara apenas Tom. Foi duro ter de
conviver com Tom, Lesley, porque só então eu percebi que não sabia nada sobre
ele. E você já havia me dito isso, certa vez, quando estávamos sentados, de
ombros colados, na escadaria da Escola. Você falava, e eu ouvia, sobre o Self e sobre o autoconhecimento, com sua
usual fala incansável, possuída por um entusiasmo iconoclasta. E então eu,
cético, respondia que você estava lendo muito Hermann Hesse e que a vida não era exatamente assim.
A verdade, Lesley, é que a vida não é
exatamente como nada, e que estar sozinho é a única coisa verdadeiramente
assustadora. Mas, de um modo ou outro, eu aprendi a viver sem a Escola, pois
tive mesmo de fazê-lo, já que você sumiu muito repentinamente, sem sequer
despedir-se ou deixar contato algum.
E até que estava indo tudo bem quando, de
repente, você retornou, metida em um blusão e em um short muito curto, com os
cabelos cortados tão reluzentes quanto areia, explodindo contra o vento como a
espuma das mais violentas marés. “Ola, Tom”, você, de algum modo, solta estas
palavras, e invade o meu quarto e a minha solidão sem pedir licença, sem
desculpar-se. Eu sigo as pegadas de lama que os seus passos firmes e largos
deixam no assoalho do apartamento. Você larga uma sacola com latas de cerveja
na mesa e abre as persianas e a janela. Um sol moribundo e ferido invade o
ambiente, colorindo seu cabelo em um laranja forte, e a sua face em um vermelho
morto. O bafo da cidade penetra a urna e nós aspiramos carbono.
- Ana Maria está morta, Tom.
E eu engasgo.
- Como?
Foi tudo o que pude dizer. Você, Lesley,
abriu duas latinhas enquanto falava, e me estendeu uma. Não parecia estar muito
abatida.
- Ela casou com Otávio, lembra? Aquele
veterano arrumado, meio inteligente e alto, que jogava no time da escola; eles
começaram a sair logo depois da formatura e casaram em pouco tempo. Você sabe
como ela era. Logo estava completamente na dele, mesmo depois de...
Você olhou-me, avaliando se devia ou não
dizer aquilo. Bem, eu realmente não me importava; bebi um pouco da cerveja, que
estava gelada, e completei a frase.
- Mesmo depois de mim.
- Exato. – E, então, um dos raros momentos
em que você pensava profundamente antes de dizer algo,
mordendo os lábios de
leve. – Eu achei que ela iria melhorar, Tom. Achei que faria bem para vocês
dois...
- E, de fato, fez; a gente só não percebeu
na hora. Mas, enfim, onde você se meteu esse tempo todo?
- Eu estive viva, Tom, o que mais importa? –
Você rondou o quarto todo, mexendo no que lhe
interessava, enquanto falava. –
Andei por aí fazendo coisas.
- E Ana? Termine a história.
Neste momento, outra baforada de carbono
entrou no apartamento. Minha janela era um front de batalha entre o meu quarto
e uma pavorosa fábrica de papel, cuja chaminé carbônica lançava freqüentes sopros
contra mim. Você sugeriu que déssemos uma andada. Nunca suportara ficar muito
tempo parada. Saímos do apartamento e rondamos os rios de concreto.
- No fim, ela não fez Moda como queria.
Otávio tinha uma idéia - em minha opinião, muito idiota - de que ela deveria
apenas cuidar da casa e dos filhos porque ele iria prover todo o capital que
precisasse; e então Ana fez justamente o que ele mandou.
As cervejas acabaram, e nós entramos em uma
loja de conveniências e compramos mais duas. Você pagou, Lesley, e me perguntei
onde arranjara todo esse dinheiro. Eu estava completamente duro na época. Fomos
para um parque qualquer, onde o verde das árvores era tratado como resíduo, e
nos sentamos em um banco de madeira, e ficamos a observar o céu plúmbeo.
- Então, um dia Ana escorregou e bateu a
cabeça no chão. Foi dormir e apagou para sempre, Tom. Otávio só foi encontrar
ela dois dias depois, quando o corpo já estava se decompondo. Ele tinha viajado
em um congresso, e ela estava em casa sozinha, coitada. O enterro foi uma
semana atrás.
- E por que você demorou tanto para me
avisar, menina? Ou melhor, por que não deu notícia alguma
durante esse tempo
todo?
Você se levantou e esticou o corpo, este
corpo esguio e energético, porque não agüentava ficar mais de um minuto
sentada. Eu, na verdade, não precisava ter perguntado. Você, Lesley, sempre foi
incansável e faminta. É do tipo que sai para dar uma volta de bicicleta e só
regressa uma semana depois, simplesmente porque, em um momento de devaneio, se
perguntou até onde seria capaz de ir. Havia em mim, de fato, uma mesma ânsia,
um mesmo desejo mortal pela vida, embora me faltasse energia. Eu era um
melancólico, um poeta cansado, enquanto você era um leão flamejante, colérica.
Ana Maria, por outro lado, desconhecia a
aventura. Era-lhe de interesse apenas maquiagem e garotos, doces ou qualquer
coisa que lhe entretivesse. Lembrei-me de sua aparência feminil; tinha cabelos
muito loiros que lhe faziam caracóis, vivia em dietas, porque tinha abundancia
em certas curvas, mas, Deus! Era, de fato, linda! Eu não conseguia imaginá-la
morta, por mais que procurasse fazê-lo. Inclusive quando fechava os olhos, tudo
o que enxergava era o seu rosto sorridente, e percebia com tristeza que ele já
não me dizia nada.
- É mesmo possível que ela esteja morta,
Lesley? – Perguntei, num impulso.
- Ela está morta, Tom. Esse talvez seja o único fato totalmente indubitável.
- Mas, uma morte tão casual... Em vinte anos
tão insignificantes!
Isso me perturbava. O que andamos fazendo
durante todo esse tempo? Comemos, reproduzimos, olhamos para o teto e, enfim,
morremos. A vida de Ana Maria me pareceu extremamente pequena naquele momento.
Enquanto isso, você bebia a cerveja e olhava para uma aeronave distante. Os
carros roncavam em algum lugar ao nosso lado, confusos, berrantes. Ana Maria
morrera, e deixara para trás nada além de um legado de fotos, todas fúteis
demais para representar-me alguma coisa. Um dia todos nós iremos evaporar, de forma
que qualquer estrada que percorrermos será, em ultima instância,
insignificante. De que me vale a vida, então? De que me vale a possibilidade de
fazer algo, de escrever, de deixar minha lasca na história? Perante a morte é
tudo muito pequeno e dispensável. Perante a morte, toda a vida é fútil.
Mas, vendo você atravessar a rua e ir
embora, minutos depois, sem muito aviso, uma conclusão finalmente me acometeu.
Diabos, você veio e foi tão rápido! Em vinte minutos, trouxe do passado
toneladas de lembranças, e fez-me perder todo o conforto e estabilidade que,
com muita luta, eu havia adquirido. Deixaste-me louco, Lesley! Novamente louco,
exatamente como nos tempos de escola, exatamente como nos tempos onde as idéias
me pipocavam na cabeça e eu não sabia o que fazer com elas, senão deixar que me
consumissem por inteiro.
Onde estava a minha vida? Onde estavam as
minhas coisas? Vendo o seu corpo quente penetrar as veredas da cidade, e seguir
adiante sempre, sem olhar para trás, sem hesitar nem um único instante, eu
percebi uma série de coisas que me faltavam. Ana Maria não era tão patética o
quanto eu imaginava; não existe isso de deixar algo para o mundo.
A vida se resume em suprir as nossas
próprias ânsias. Ana tinha as suas, e as supriu a seu próprio modo; eu ignorara
as minhas em busca de um conforto o qual hoje, Lesley, porque eu te vi ir
embora, estou disposto a sacrificar. Que venha a loucura, se é ela quem me faz
vivo!
Enquanto a você, menina, nada posso fazer. Novamente
sozinho, não sei se te verei de novo daqui a um, dois, ou dez anos. Na verdade,
pouco importa; o mundo irá te proteger, pois és filha dele, e você conhece os
seus caminhos. Sempre muito viva e bonita, eu desejo a ti sorte, Lesley, porque
de um jeito ou de outro, eu te amo.
De Tom, com a esperança de que essa carta
possa te alcançar.
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