27 de janeiro de 2014

Coração de Ferro

Coração de Ferro


      Ele veio como uma quimera na doce manhã de um homem. E eu que tão pouco sabia sobre a vida. E ele que tantas pessoas já havia transportado. Sua garganta apitava

   Com uma urgência vaporosa,

   O meu nome. Quando embarquei, pouco me disse em palavras sobre o céu e o inferno. Mostrou-me ambos, entretanto, através de suas janelas

   Embaçadas.

   Vi através delas um mundo nunca antes visto por meus olhos incipientes. Vi os campos de uva e os bosques e as sebes. Vi os rios que cortam a terra e vi crianças brincando de se molhar.

   E amei e odiei com a mesma absurda intensidade

   O quão magnífico as coisas podem tornar-se sob as lentes da distância...

   - Isso era o céu.

   A fome, por exemplo, que havia no topo da colina (onde uma comunidade inteira de desabrigados era OBRIGADA a suportar a sua própria falta de sorte) - era o inferno.

   E ele me mostrou o inferno com tanta crueza que cheguei a declara-lo culpado pelas coisas que de mal vi. “Oh, o quão terrível és, tu que tens apenas um punhado de carvão como coração, e é todo de ferro!” E, contudo, se de ferro não fosse, como seria possível para ele transportar-me?

   Como não bastasse, mostrou-me ainda mais. E, conquanto foram meus olhos que viram, e apenas eles, não poderia eu descrever aqui todas as coisas que tanto me impressionaram.

   Eu cheguei inclusive a dormir em seu colo – uma hora tranquila, histórica, na manhã de um homem. E foi certamente quente, ainda que tudo balançasse justamente por ele ser tão inconstante, tão volátil e tão veloz.

    E eis que, por fim, ele me abandona nesse lugar estranho. É meio-dia e um sol insólito refulgia no céu. E tudo isso me deixa em uma grande incerteza sobre as coisas do mundo.

   Vê-lo afastar-se assim, deixando um breve rastro de fumaça no vento...

   Sobretudo tentar agarrar essa fumaça que se desfaz em memória...

   É injusto e cruel trazer o meio-dia à vida de um homem para então abandona-lo na Estação, sozinho. À manhã, a Estação é calma e confortante, e é bem feito marulhar nela.

   À tarde, porém, estar estacionado é um estorvo.

   Ainda sou uma criança, embora o sol esteja alto em minha vida. E ainda tenho medo, embora minhas pernas estejam seguras. Por isso, é lícito que eu te pergunte apenas isso (contrariando, assim, a regra geral de que a metalinguagem é absurda no amor):

   Se não pretendia acompanhar-me para sempre por estes espaços alcóolicos, insanos, descabidos e invulneráveis...

   Por que não me avisaste, minha querida quimera de ferro, que tua passagem era só de ida? Poderias tê-lo feito, apesar de que

   Eu iria. Ainda que me tivesse sido avisado.    


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