16 de fevereiro de 2012

Vamos à Praia


Vamos à praia


   Meu corpo jaz imóvel no colchão amassado. Cobertas e travesseiros espalhados, e socados, e amargurados... Eles inda guardam o fedor de morte da noite que se passou. O relógio marca quatro e meia da manhã, mas a loucura atordoante já se foi, e agora tudo que sinto é este mormaço etéreo. O sol ainda dorme, e as luzes amareladas e sujas de um poste atravessam minhas persianas de metal, lançam as suas sombras noturnas contra a parede. Sombras... Caladas, repousam em cada canto de meu quarto escuro. E eu aqui, parado...

   Ouço passos pela casa. São passos leves, como pés de uma criança que tateia o assoalho timidamente. Mas não tenho crianças em casa. Talvez seja um ladrão. Não ligo se me roubarem a vida... Não depois da noite que se passou. Mas ainda há resquícios de temores em mim. É melhor que eu desça para ver o que está acontecendo.

   Com um esforço cansado, me levanto do meu leito de dor. Eu estou suado, mesmo a noite sendo tão fria. Caminho pesado até a porta do meu quarto. Está aberta. Vejo uma frágil forma em companhia de sombras, postada à frente da escada que escorrega para o primeiro andar. Ela desce correndo, porém sem pressa, e volta a flutuar com leveza pelo andar de baixo. Sigo à sua procura.

   Pára na cozinha, a sombra. E eu ao seu encontro, movido por um sentimento estranho, como se estivesse morrendo... E acendo as luzes do aposento abandonado. As luzes, como sopro divino, cegam meus olhos com seus raios gritantes. (Quanto tempo faz que não vivo algo tão claro?) Demoro um punhado de segundos para me acostumar à vida que reside na claridade. O vulto não se vai; fica a me encarar por detrás do balcão.

   -O que você quer? – Pergunto ao retirar as mãos dos olhos e avistar uma criança, uma menina, me olhar com inocência.
   -Quero sair.
   -Sair ‘pra onde, droga?

   Meus olhos estão irritados. Minha voz também. Aproximo-me do balcão lotado de pratos sujos e procuro por uma caneca limpa. Não há canecas limpas. Ponho o café velho para esquentar. Dane-se, usarei uma imunda mesmo. Não me importo.

   -Quero ir ver o mar.

   Olho para a pequena desconhecida com desdém. Deve ter uns seis anos. Porém, seus olhos são frios e velhos demais para aquele corpo. Ignoro, afinal, aquela menina magra vestindo branco deve ser apenas uma ilusão de minha mente. Ando tendo muitas alucinações ultimamente.

   -Não posso agora. Tenho coisa ‘pra fazer. – Respondo enquanto sento e espero o café ficar pronto.

   Meu telefone toca. O barulho é imensamente alto e irritante, contínuo, até que para de súbito. Silêncio outra vez. Mas ele volta a tocar em outra série de alarmes barulhentos. Que porra! Tateio minhas sobrancelhas, profundamente irritado. Dor de cabeça do Inferno!

   -Não vai atender? – A menina pergunta.
   -Não.
   -Quem é?
   -Não sei – Minto.

   O café pronto, pego minha xícara imunda e derramo o líquido preto em seu interior. Dou uma golada que queima toda a minha boca. Não gosto de café. Também não gosto da minha vida.

   -Vamos sair. – A menina insiste.

   O telefone para de tocar.

   -Estou ocupado, já disse.
   -Ocupado com o quê?

   E tomo outra golada, essa queima minha garganta inteira. Posso sentir o calor penetrando por minhas entranhas e fervendo meus pulmões. Pego o maço de cigarros que repousa no balcão e retiro um rolo de nicotina de dentro dele. O cigarro é fedorento e repugnante. Ponho-o na minha boca amargada pelo café sem açúcar e faço menção de acender; Mas tenho pena da menina. Ponho o cigarro de volta no maço.

   -Você quer ir aonde mesmo? – Levanto-me com minha xícara porca.
   -À praia.

   Apanho a minha jaqueta, e saímos. A rua está vazia, iluminada apenas pelos magros e deprimidos postes amarelados. Não há carros, e todas as casas estão fechadas, apagadas e silenciosas por dentro de suas paredes frias. Não há lua, nem estrelas, e apenas uma brisa baldia vem nos cumprimentar naquela terrivelmente escura manhã. Entramos ambos no meu Ford antigo e fechamos suas portas. O vidro está coberto de orvalho. Eu ponho a xícara de café entre as pernas e giro a chave uma vez. O carro late em um barulho irritante, e silencia. Tento outra vez, sem resultado. Merda! Terceira tentativa... Pegou. Saio de ré, engato a primeira e começo a dirigir por aquela rua vazia, sob o ranger convulsivo e irônico do motor.

   -Onde você mora? – Pergunto, numa vã tentativa de descobrir se a menina é ou não real. Ela me dá um endereço plausível.
   -Você tem filhos? – Pergunta-me a criança após instantes de silêncio.
   -Não.
   -É casado?
   -Já fui.
   -Há quanto tempo?
   -Uma semana.

   Viro uma curva sem olhar para os lados. Não há carros na rua àquela hora da manhã. Tomo uma golada de meu café amargo. No horizonte, os primeiros raios de sol já começam a colorir o céu. Mas ainda é bem pouquinho.

   -É por isso que você anda tão triste? – Ela me pergunta. Não respondo. – Toda noite eu ouço os seus gritos...
   -É que assisto muito futebol.

   Desculpa de merda. Nunca quis me desculpar, afinal. Apenas não quero perder meus últimos e modestos resquícios de dignidade. Levo a xícara à boca, porém uma irregularidade no asfalto faz o líquido fervente respingar em minha roupa. Que desgraça! Jogo a xícara inteira pela janela do carro. Acerto, sem querer, o crânio de um vira lata que late lamentavelmente depois de acertado. Talvez tenha sido um cachorro. Talvez, um homem. Bem, qual a diferença, afinal? Freio descuidadamente à frente de uma loja de conveniências.

   -Quer algo para comer? – Pergunto à criança que está sentada ao meu lado.
   -Um misto quente.

   Entro na loja. Minutos depois saio com um misto quente e uma barra de cereal. E uma camisa nova também. Jogo os farrapos manchados de café no monte de lixo ao lado de um poste. Entro no carro e dou o pacote de pão para a menina, que abre e come devagar. Não ligo o carro de imediato; Gostei de vê-la comendo o misto. Lembra a paz e a tranqüilidade que um dia já tive. Abro minha barra de cereal e levo a boca. Tem um gosto tranqüilo e suave comparado ao café amargo. Jogo fora sem terminar. Não combina comigo.

   Ligo o carro e voltamos ao caminho da praia. Passamos alguns preciosos instantes em silêncio, até que eu pego o rádio e ponho para tocar. Reconheço Simon & Grafunkel no aparelho. Seu som é calmo e agradável. Pura merda. Ponho em um canal vazio de chiados e terror. Combina muito mais comigo. A menina me olha com tristeza. Giro o dial até voltar ao folk.

   -Se ela não gostava de você, por que casaram? – A criança me pergunta.
   -Mas ela gostava.
   -Então por que não estão juntos?
   -Porque eu a amei. E ela só gostava.

   Mais um pedaço de estrada afundado em silêncio. O rádio toca para ninguém. Minha mente está distante, muito distante. E os raios de sol vão se tornando cada vez mais azuis no horizonte. Já podemos ver a praia à distância.

   -Quem foi que ligou mais cedo? – A menina pergunta.
   -Uma amiga.
   -Por que você não atendeu?
   -Porque não quero que ela me veja assim...

   Ela me oferece a metade de seu pão e eu a tomo em minhas mãos de bom grado. Ele ainda está quente, e úmido no lugar onde os lábios da criança o tocaram pela última vez. Estamos quase chegando à praia. Uma brisa melancólica abate o carro e beija meu rosto. A música termina. Adeus Simon, adeus Garfunkel! Muito fodido seu nome. Toquem algo mais fervoroso, mais mortal... Querem um pouco de meu ódio? Tenho tristeza o suficiente para matar, medo o suficiente para continuar a viver...

   -Essa sua amiga... Ela se importa com você. – Constatou a criança. O comentário mais infantil que fizera até agora.
   -Eu gosto muito dela.
   -Por que não casa com ela, então?
   -Porque ela me ama. E eu só gosto.

   A criança suspira e retira uma mecha de seus cabelos castanhos da face. O céu agora está mais claro, e já podemos ver o amarelo do sol surgir de lá de longe, do oceano, e se juntar ao azul pálido do céu. Desacelero, paro o meu carro na calçada que dá à praia. O fim dos gritos do motor é uma bênção, e a cidade está silenciosa. Saímos do automóvel e caminhamos lado a lado em direção à areia. A água está turva, porém calma. A areia está gelada.

   -As águas daqui são muito profundas, não é? – A menina pergunta. Eu aceno que sim.

   Finalmente, ali estamos. Tiro meus sapatos e deito-me na areia. Não há mais ninguém na praia além de nós dois, e não haverá mais ninguém por um longo tempo. A calma reina por entre as ondulações da terra e a altivez do oceano. A garota se deita ao meu lado, seu vestido branco sendo manchado pela mácula das pedras em pó.

   Ficamos assim por longos minutos, a observar o céu. Minha mente se cala, e sinto-me sonolento. Sinto cheiro de morte. Sinto-me morrendo. Num movimento repentino, a menina toma minha cabeça em seus braços. Eu fico parado. Imóvel. Meu coração, porém, se enche de carinho e proteção. E percebo, por entre um afago e outro, que a menina tem ares de maresia.

   -Você não existe. – Afirmo sem pensar. A criança nada responde.

   Ela me levanta. Sinto-me tonto. Meio dormindo, meio desperto. Ela tira seu vestido e derrama-o ao chão. De repente, percebo minhas roupas fedorentas junto às dela, cobertas de areia. Enfim estou nu, como sempre estive. Porém, agora estão ausentes as roupas que escondiam esse triste fato. E nós entramos no mar gelado. Ela faz meu corpo boiar, tocando minhas costas com suavidade. E nós nos afastamos cada vez mais da costa...

   -Você quer parar de sofrer?

   Ela me pergunta. Claro que quero. Não quero mais gritar. Não quero mais ligar a televisão em canais inexistentes e encontrar ali, naquele chuviscar pálido, um retrato de minha alma turbulenta.

   -Então afaste minhas mãos de ti. Afaste minhas mãos de ti, e nunca mais haverás de sofrer.

    Ela me diz. Mas eu tenho medo e não consigo. Mas aceitaria de bom grado se 
fosse ela quem me soltasse...

   -Eu não posso soltar minhas mãos. Eu não mato ninguém. Apenas conforto os que vêm até mim.

   É um esforço ínfimo. Basta que eu vire meu corpo, e está tudo acabado. E eu irei, em paz, repousar no mais profundo desse oceano. Basta que eu escape das mãos que me fazem boiar, e a serenidade tomará conta de meu espírito. Basta que vire meu corpo... Que eu não sei nadar.

   -Por que você é uma criança? – Lhe pergunto.
   -Porque sou só o começo.

   Eu afundo. Não foi muito grande o esforço. Não doeu. E agora, estou flutuando lentamente nesse mar de calma. A criança sumiu, e eu hei de sumir em alguns instantes também. É só esperar, e não haverei mais de sofrer com nada.

   Mas o ar finalmente se acaba. Uma ânsia de vida surge de minhas entranhas. Minha respiração volta a funcionar em meu corpo fechado. Foda-se a calma, foda-se a morte, pro inferno toda essa conversa de parar de sofrer! Meu corpo anseia por vida, meu espírito anseia por liberdade. Eu me debato em busca da superfície, mas não consigo achar nada além de água. Estou desesperado. Sinto vontade de xingar. Quero pedir socorro, quero voltar pros braços da criança, quero voltar pros braços de minha mãe. Quero voltar à areia, ao meu velho Ford. Quero me desculpar ao mendigo que acertei a xícara de café. Quero parar de fumar. Quero arrumar minha casa, minha vida, quero voltar a viver. Por favor, criança, me traz de volta! Eu me arrependo. Eu me arrependo!

   Um braço firme me enforca o pescoço. Chego à superfície e tomo um grande gole de ar. O maior gole de ar que já tomei em toda minha existência. O ar tem gosto de café, e arde nos meus pulmões. Eu estou ofegante. Tremendo de frio e de medo. E estou tonto. Minha visão está escurecendo, tornando-se turva como a água do mar. E por uma brecha entre minhas pálpebras, como a luz do poste que atravessou as persianas de meu quarto, a imagem da criança atravessa a podridão de meu corpo e atinge minha alma sedenta. E ela está a sorrir.

   -Por que não atendeu minhas ligações, desgraçado? – Pergunta a magoada e ofegante voz de minha salvadora, já na areia.


   E eu dou uma gargalhada cansada. A quem quis enganar com isso de paz, serenidade? Desculpe-me, minha pequena morte, mas ainda não sou bom o suficiente para você. Ainda hei de tomar um ou dois goles de café antes de terminar aquela barra de cereais.

2 comentários:

  1. Incrivel ruukasu, Muito bom, muito bom mesmo '-'...

    Não digo que é o melhor texto que já li seu, tenho um apego especial por "três dias para chegar até aqui"... Mas a estética e o ar "funebre" desse foi muito bem empregado. Embora por vezes eu acho que uma escrita usando o padrão de terceira pessoa poderia trabalhar melhor a consciencia angústiada do seu suicida. Mas ficou muito bem escrito, o diálogo final entre ele e a morte está cheio de conteúdo e cheio de vida. sim, irônico... mas sim, cheio de vida.

    Só achei que você ainda podia ter colocado mais conteúdo no texto, mais profundidade de idéias. A mente de uma pessoa que tenta contra sua própria vida não é só angústiada como é Profunda, profunda em pensamentos consequentes do tamanho da sua angustia, claro. Mas ainda assim, faltou uma gota de devaneios ^^

    Mas ficou muito bom! você tem muita chance de estar entre os primeiros! Como eu disse, você sempre escreve muito bem, seu jogo de palavras é extremamente bem trabalhado. Seus diálogos fluem com delicadeza, e o consciente do sua personagem principal fica interessante quando o mundo é descrito pelo seu vasto vocabulario. ^^

    Meus parabéns, um otimo conto.

    Continue assim! ^^ E melhore cada vez mais! E obrigado por todo o apoio...

    Nos vemos nas classificações kkkkk xD

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  2. Adorei o conto... Me lembrei muito do Dom Casmurro, do Machado de Assis... A amargura e melancolia contrastam com a doçura infantil demonstrada na figura da criança que se materializa de alter ego do personagem principal. Discordo com o comentário anterior que fala da terceira pessoa, pois acho que a primeira pessoa cria um sentimento de empatia maior com os leitores. Num assunto como depressão, que é tão pessoal, a primeira pessoa dá conta de mais emoções e sentimentos...
    Se pudesse mudar algo, mudaria o final, pois acho a perspectiva de final pós moderno mais realista. Numa obra pós moderna, n existe final. Mas a vida n é mesmo assim? A criança poderia ter desaparecido e ele ter ido a praia, mas o leitor n saberia de nada... Mas vc, como escritor, tem liberdade e autonomia para fazer as escolhas estilísticas que vc quiser.
    Amanda Ribeiro.

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