26 de setembro de 2012

A Estrela de Marselha


A ESTRELA DE MARSELHA
Auto-biografia simbólica



   (O cenário é um bosque mui escuro e de árvores altas. Margeando o centro do palco, imensos pinheiros retorcidos embaraçam-se na exasperante busca à luz; Ao chão, resvala-se uma chacina de folhas mortas, retorcidas e velhas; Vetores de luz, precisamente retilíneos, recortam o cenário em sete ou nove fitas: são os resquícios de um sol que, no ímpeto de manter a vida, fazem seu árduo caminho através das ramagens do verde. Ao compasso da orquestra, em som audacioso, Sátiros e Ninfas espreitam e perseguem-se pelas brechas das árvores, libidinosos. Ao passo que, depois de algum tempo, começam a cochichar em tom ascendente. Sonidos de surpresa e desacordo exaltam-se frente aos outros vários sons, e a orquestra anima-se, e o movimento figurante acelera-se até que, enfim, o bacanal cessa por completo e Lu adentra o cenário por entre os paus.)
   (Lu vem vestida em branco, carregando uma ânfora cheia de vinho e uma vareta quebrada, com aparente desconforto. Tem aspecto sereno e infantil.)

LU

   Ó que terrível destino! Chateio-me com a cruel roda. É compreensível que se nasça filha de Hélio e Luana, desde que se furtem as características separadamente, e não as misture! Se do Sol roubo os genes, que eu seja Sol! Se da lua trago a semelhança, que a Lua eu seja! Mas herdar um tanto de ambos? Impossível. Assim, não sou nem Sol e nem Lua, não me sinto bem entre os homens e nem entre mim mesma. Entre quais eu pertenço, então? Dentre qual tipo eu hei de me sentir confortável e pertencida?

BACO

(Entra em forma de um jovem altivo vestindo uma máscara sorridente. De seus bolsos cheios caem moedas de ouro que se perdem entre as folhas; Há uma corrente amarrada em seu pescoço.)

   (À parte) Ó, veja que sorte! Então os Sátiros estavam dizendo a verdade. Há uma mortal perambulando pelo bosque, e eis que é uma moça!

LU

(Canta enquanto cata flores)
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ela brilhar
Com pedrinhas de brilhante,
Para o meu amor passar.

Nesta rua tem um bosque
Que se chama solidão
Dentro dele mora um anjo
Que roubou meu coração.

BACO

Se roubei teu coração
É porque lhe quero bem
Se roubei teu coração,
Tu roubaste o meu também!

LU

   Minha nossa, não dei-me por observada! Deus sabe o quanto devo ter lhe incomodado, caro senhor, com esta minha estridente voz!

BACO

   De modo algum! É verdade que tu tens a voz um tanto carregada, mas assim não é também a voz da alma? De qualquer sorte, não me chameis de senhor, pois não vos sou: toma-me por Baco.

LU

   Perdão, Baco. Chamo-me Lu.

BACO

   Lu de quê?

LU

   Apenas Lu. Meus pais não me deram outro nome, pois.

BACO

   Toma-me apenas por Baco também, então. (Nota o graveto e a ânfora) Graciosa menina, não deveis em tua idade carregar tais pesados fardos! Que tens em teu jarro?

LU

   Trago vinho, até as bordas, do qual não beberei, porém se entorpecerão os meus amigos.

BACO

   E este graveto, de que vos serve?

LU

   Este graveto é lembrança de um amigo que muito prezo, mas que está longe.

BACO

   Se amigo é, nunca estará longe, minha cara; vem, dê-me a ânfora e o graveto. Por ti carrego este peso até seus amigos, e conserto de bom grado esta tua lembrança.

LU

   Se o incômodo não for tanto, querido Baco, me aprazeria muito tal ajuda.

BACO

   Imagine se seria! (Sai da cena)

   (Lu volta a catar flores. Porém, ouve-se um grito e ela cai; a orquestra inicia uma peça exagerada e grotesca, enquanto os Sátiros e as Ninfas invadem o palco e dançam em círculos em seu centro, os sexos resplandecendo à escassa luz em feixes. Um tanto depois, um Sátiro maior e de falo ereto adentra o centro do circulo e todos cessam a dança. Ele atira uma cesta de amoras ao centro da orgia e aponta para Lu; as Ninfas agarram-na sem discrição e a levam ao centro da ciranda.)

LU

   Larguem-me, larguem-me! Ó, inebriados asnos, não vêem que não sou dos seus?

SÁTIRO MAIOR

   E de quem és, então? A que lugar pertence tal bela criatura, que nos seja proibido alimentar com amoras?

LU

   Herdeira de Hélio sou, o príncipe dos homens, a realeza do de fora!

SÁTIRO MAIOR

Não, não o és, pois não brilhas!

LU

   Pois então sou filha de Luana, a intocável de si mesma, rainha do de dentro!

SÁTIRO MAIOR

  Não, não o és, pois não sabes teu caminho.

   (E as Ninfas e os Sátiros começam a enfiar as amoras à goela de Lu, em um ritmo frenético e libidinoso. Porém, visto a recusa da menina, o sumo da fruta derrama-se em caudaloso escarlate e macula-lhe a veste. Ela debate-se e expurga a orgia, porém é inútil. A música agita-se cada vez mais, até que tudo cessa e a massa se levanta à presença do mago.)

   (O mago veste-se completamente de preto e é velho. Tem as mãos amarradas às costas e os olhos cerrados. Há um bastão pendurado em seu pescoço, porém inacessível.)

O MAGO

   Larguem a menina, criaturas asnas, agora, pois vos ordeno!

SÁTIRO MAIOR

  Por que haveríamos de largá-la, se ela é dos nossos?

O MAGO
     Não, não o é, pois ela questiona.

    (Os Sátiros e as Ninfas saem e a música cessa.)

LU

   Ó grande mago, ó grande amigo! Bendito seja aquele que te despertou do sono!

O MAGO

   Se faz noite em tua alma, querida, eu acordo; quando o dia é claro, porém, não o suporto. Mais além, o que fazes aqui, sozinha, sem teu jarro ou tua vara, a ser violentada pelos Faunos?

LU

   Ó grande mago, se puder, fazei-me esquecer o ocorrido! Mas bem sei que é impossível. Jaz em minhas vestes o sumo do pecado, e limpá-la, olhai, é impossível!

O MAGO

   Que triste destino a acometeu, querida Lu. E tudo porque não sabe quem és! Vamos, toma de volta tua ânfora e teu graveto, que vos guiarei a caminho de ti mesma!

LU

   Mas como, sábio mago, se tens os olhos trancados, as mãos amarradas e a espada ferida? És por fim um inválido, desprovido de orgulho e um castrado!

O MAGO

   É por ser tudo aquilo, exceto o que sou, que nada sou. Mas guio-te, beata, se trouxeres teu jarro e tua vareta de volta.

LU

   Invoquemos Baco, pois!

O MAGO

   Pede aos Sátiros, pois são amigos do dito!

LU

   Não, não aos Sátiros. Não quero vê-los por algum tempo.

O MAGO

   Chama ti por ele, portanto. Se é o teu choro o que me invoca, invoca Baco com teu riso!

   (Lu sorri e Baco aparece.)

BACO

   Porque me chamas, querida?

LU

   Dai-me a ânfora e a vareta para que eu conheça a mim mesma.

BACO

   Tem certeza do que dizes? Para mim é muito óbvio que és Lu, e sempre o serás.

LU

   A parte de mim que é Lu eu já conheço; dá-me a ânfora e o graveto.
   (Baco cede os objetos a Lu, que os carrega com dificuldade.)

O MAGO

   Agora, chamarei o Sátiro para que resolvas teu enigma; seja forte, vença-o e conhecerás teu caminho.

   (A luz do sol agora cessa por completo, e o palco afunda-se na escuridão e no silêncio. O mago recita um feitiço antigo e invoca os Sátiros e as Ninfas. Uma fogueira se acende no meio de um círculo onde todos os personagens se encontram, sentados. Em pé, há apenas o Sátiro maior e Lu, postados frente a frente.)

SÁTIRO MAIOR

   Responda-me porque me chamas.

LU

    Questiona-me primeiro.

SÁTIRO MAIOR

   Não cabe a um Sátiro questionar.

LU

   Não cabe ao vazio responder.

SÁTIRO MAIOR

   (Rindo) Pensas que atingiu o vazio? Então o que fazes aí, com este graveto na mão?

   (Lu agacha-se, enterra o graveto)

LU

   Ele é o caminho.

SÁTIRO MAIOR

   E este vazo cheio, de que vos serve?

   (Lu derrama todo o vinho no chão e o graveto cresce, tomando a forma de uma mulher.)

LU

   Ele é o desafio.

SÁTIRO MAIOR

   E esta tua veste suja, sua prostituta, de que vos serve?
   (Lu tira a veste, resplandecendo nua, e veste a mulher.)

LU

   Esta roupa é o excesso.

SÁTIRO MAIOR

   Ironizo tua sabedoria ridícula, menina, pois sei que o que procede não conseguirá me responder. E este corpo, tão casto e tão vivo, de que vos serve?

   (Neste momento, o mago se levanta. Agora ele possui um corpo jovem e nu, tem os olhos abertos e um punhal em suas mãos. Ele cede, como num ritual, o punhal para Lu. A menina sorri e caminha até Baco. Enterra-lhe, enfim, o punhal no peito.)

LU

   E que do de fora eu me veja livre.

   (Depois, dirige-se ao mago e lhe abre o peito em um rio de fogo.)

LU

   E que do de dentro eu me veja livre.

SÁTIRO MAIOR

   (Desesperado.) Achas, pois, que se verás livre de nós também? Não temos pudor ou vergonha, somos fortes e vigorosos!

   (Lu, por fim, enterra o punhal em seu próprio peito despido.)

LU

   E que da ilusão eu me veja livre.

   (Os Sátiros e as Ninfas queimam e dissolvem-se em folhas secas, juntando-se à multidão das outras, mortas no chão. O fogo apaga-se e o silencio cai sobre todo o palco. Pouco a pouco, muito lentamente, os primeiros raios de sol vêm surgindo por entre as brechas das ramagens, em vetores retilíneos e precisos. Pássaros são ouvidos à distância, e o bosque nunca esteve tão claro como agora. Não há mais Sátiros ou Ninfas, e só o corpo nascido da vareta se encontra no cenário, estático às sombras. Não se sabe exatamente como é tal ser. O corpo, então, se move devagar, testando cada nova articulação, articulando cada novo pensamento - O corpo despe-se da veste maculada, mija o vinho para fora das entranhas e arranca das unhas os resquícios do galho. Chegado à luz, revela-se o corpo da própria Lu, nu, porém maduro.)

LU

   Antes de filha do Sol e antes de filha da Lua sou, por graça do destino, minha própria filha; E excluindo tudo o que me faz ser eu mesma, encontro minha própria estirpe.

(Ao fundo do cenário brotam-se sete estrelas, Lu caminha para fora do palco e as luzes se apagam lentamente.)


Um comentário:

  1. Velho, isso me disse algo muito próprio, muito meu. Gostaria de ter escrito esse texto...

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